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segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A Parreira




     Se o leitor não se interessar por manifestação intensas de nostalgia, é melhor parar a leitura por aqui. Hoje me deu vontade de por o coração na ponta dos dedos. Acho que vivi um momento daqueles que ficam consagrados em filmes e em bons livros, um daqueles em que o protagonista está prestes a morrer e vê a vida toda passar como um filme diante de seus olhos.
     Após sair do trabalho, pensando sobre minhas aventuras e desventuras, decidi que iria passar na escola onde estudei e solicitar uma segunda via do histórico escolar, para eventualmente fazer a matrícula na universidade, se vier a ser aprovado também na segunda fase do vestibular. Estacionei o carro, olhei pelo retrovisor e vi os ônibus transitando pela rua. Prestei atenção neles e nas expressões de cansaço transmitidas pelas telas das janelas. Talvez o cansaço de fazer sempre as mesmas coisas seja o principal motivador ou instrumento para a transformação. Sai do carro com a convicção de que iria atingir mais uma meta, um tanto quanto inesperada, mas que certamente poderá provocar transformações. Aliás, a simples proposta de fazer algo novo já provoca alguma transformação.
     Subi pela escadaria que leva até a porta da secretaria da escola. Demoliram a parede dos fundos da antiga sala do diretor e reconfiguraram todo o pavilhão para isolar a secretaria do restante da escola, evitando que o espaço escolar seja visitado por elementos externos. A escola parece uma prisão e nunca Foucault esteve tão vivo na minha cabeça. A diferença é que agora não é para prender os internos e promover ações disciplinares, e sim, protegê-los do que é de fora. Talvez a única saída, sobretudo quando se trata de uma escola na periferia, em Colombo.

     Lá estava a Vilma, secretária responsável pela escola desde 1988. Solicitei o histórico e a chamei pelo nome. "1996, Terceiro B", foi a frase que disse após informar meu nome. E lá estava o registro da minha vida escolar. Pegá-lo em minhas mãos disparou adrenalina. Suspirei. A prova da minha existência estava diante de mim. Quantas vezes paramos para observar que existimos? Aquele papel foi a agulha que disparou minhas memórias. Conversei por meia hora com a Vilma, que após olhar minha foto, datada de 1993, disse, talvez por educação, "eu me lembro de você".
   Lembranças de professores já falecidos, outros aposentados, outros na ativa. Lembranças boas, lembranças tristes. Uma conversa com o atual diretor sobre as ironias da vida e o mito do eterno retorno, da coisa cíclica. Ali estava eu, novamente. Fui informado de que o documento seria expedido em uma semana e pensei: "que legal, retornarei e verei a escola novamente". Passei então diante de uma árvore no pátio da escola, onde ficava plantada uma parreira, que sempre era protegida pelo Professor Alfeo. Se hoje leciono história foi por causa dele. Alfeo protegia aquela parreira e várias vezes falava que onde viveu na infância haviam parreiras e ele gostava de comer as uvas "no pé". Alfeo nasceu no noroeste da Itália, fronteira com a Iugoslávia. Leal aos valores monárquicos, foi feito prisioneiro quando Mussolini assumiu o poder, viveu grande parte da segunda guerra em campos de concentração e foi libertado pelos americanos, vindo depois morar no Brasil, onde se fez professor. Foram diversas as conversas com ele, ao lado da parreira, durante o recreio, por que a sala de professores era infestada por "petistas" e ele não gostava de comunistas. Anos mais tarde num reencontro inesperado ele informou que partidários de Tito haviam feito mal a sua família. Aquela parreira não estava mais ali, mas habitava viva em minhas recordações.
     Entrei no carro e ali senti o tempero que talvez a morte um dia me ofereça. Lembrei-me da minha ingenuidade, da minha rebeldia, da minha ignorância, das minhas esperanças, dos meus sonhos de jovem, das aventuras, das desventuras. A cada lembrança vinha uma sensação estranha, uma romantização da pureza que eu, ali naquele instante, idealizava. Vi-me em 2012, com todas as frustrações acumuladas, com todas as dores pesando no peito e com muito menos esperança do que em 1996. Talvez eu realize muitas coisas ainda, mas ali naquela hora, eu chorei. Lágrimas caíram diante da memória viva, diante da nostalgia ácida e corrosiva. Diante daquela pressão no peito, que aperta de jeito, sem a gente explicar o porquê de não conseguir respirar. Lembrei-me também de um dos momentos mais lúcidos da minha adolescência, quando eu afirmei para um professor de história que tive, que eu adoraria um dia apreciar o que eu achava certo em público e para que a partir disso pudesse atingir um número de pessoas, que passariam a tentar ser melhores. Na realidade, eu disse que adoraria fazer isso sendo músico, mas isso não faz tanta diferença agora. Sorri lamentando todas as escolhas erradas que fiz, sobretudo, as que me fizeram me tornar um homem serenamente mais triste, imerso em contradições. Mas ainda havia algo em mim que é um pouco do André de 1996. Aquele idealismo que inspira as pessoas, que no passado se configurava como ingenuidade e hoje habita em minhas ações com o nome de engajamento; aquela vontade de fazer alguma coisa certa, mesmo errando no processo, mas ainda assim, tentando.
     Voltei para casa pensando no passado, no provável e possível futuro próximo, convicto que vou adorar sempre me inserir em atividades que possam através do exercício intelectual criar um padrão de conduta moral que eleve as relações entre as pessoas. Um suspiro resgatou minha esperança de ver no futuro momentos de menos melancolia, sobretudo, quando o dia da morte chegar. Realmente não quero ver o filme da vida e chorar lamentando seu final.  Quero um dia poder dizer "foi uma bela história, pena que acabou".