Eu andava com saudades da pesquisa acadêmica, decidi reler uns textos que escrevi, rascunhos, enfim, e resgatei este pequeno texto. Tem um aspecto mais ensaístico, e o fiz para matar saudades da época em que eu não me prendia a livros didáticos e apostilas para produzir meus textos.
A rigor, pensar sobre a música no Brasil faz muito tempo que é pensar a partir de duas vertentes, ambas extremamente nacionalistas. A primeira destaca as manifestações da cultura popular, valoriza uma idéia de que o popular é a essência, o elemento que identifica a Nação. Isso remete a noção Gramsciana de nacional-popular. Nessa conformação, as músicas étnicas, urbanas ou rurais e toda a diversidade da cultura musical presente no Brasil autenticariam a brasilidade. É esse popular que é base da cultura nacional.
A outra vertente entende que o que é nacional está relacionado a um ritual simbólico de antropofagia, em que todo o elemento cultural externo é aproveitado pelo que já existe internamente. Simbolicamente essa antropofagia está associada com a prática antropofágica da cultura indígena Tupi. Esse elemento externo é apropriado pelo interno e a partir do contato cultural se é criado algo novo. É esse algo novo que é o nacional. Daí advém a máxima modernista de que a cultura brasileira é Antropofágica.
É destaque dentro do pensamento, da produção sociológica, jornalística e historiográfica sobre música brasileira a questão da música negra. Em geral, mesmo quando se diverge sobre a origem dos elementos musicais, o Samba é considerado o símbolo da brasilidade, o gênero matriz da música brasileira, originalmente negro.
Curiosamente, brancos atribuíram à esse gênero musical a ideia de que ele é o ícone da brasilidade. Haveria uma preocupação em se dar um espaço para a cultura negra, uma busca, um resgate, um gesto solidário para com os negros, dada a trágica experiência escravista brasileira? Penso que não.
A busca e a caracterização dessa música como nacional não está relacionada a uma posição solidária, com vistas a equiparar, a promover uma igualdade entre brancos e negros. No caso brasileiro, a preocupação é buscar um gênero musical que possa consolidar uma música nacional, uma cultura nacional. Essa busca se dá basicamente por dois motivos.
Durante a década de 1930, com a ditadura Varguista, há uma preocupação em integrar o território culturalmente. Pela primeira vez há uma preocupação maior com o ensino de língua portuguesa. O Estado procura difundir os meios de comunicação no intuito de integrar a nação.
É desse período a oficialização do carnaval como a grande festa popular do Brasil. Carnaval passa a se tornar sinônimo de samba. Entretanto, havia um pequeno problema. O samba era indisciplinado demais para as concepções do Estado. Pensemos que é nessa época que está ocorrendo uma transformação radical no Brasil. Apesar de a abolição da escravidão ter sido no século XIX, é nas décadas de 1930 e 1940 que passa a haver um maior intento de modernizar o Brasil. As relações de trabalho tipicamente capitalistas passam a ser valorizadas.
O samba, até então, tinha uma rebeldia, uma reação negativa ao mundo do trabalho. É dessa época a caracterização da figura do “malandro”. Como gênero musical popular, o samba auxiliaria o Estado na integração nacional, mas para isso, precisava se civilizar, precisava entrar em comunhão com as ideias novas, de modernidade. O grande samba que nos mostra essa busca por uma nação, civilizada, perfeita e adequada aos ideais das novas relações de trabalho é “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso (um compositor branco).
Se essa música negra foi aceita pela elite brasileira (com ideais políticos de direita), como gênero sintetizador da brasilidade, os intelectuais da esquerda também assim a consideraram, mas com outros propósitos.
Não dá para pensar essa apropriação que a esquerda faz do samba, sem antes pensarmos a questão da Revolução. O ideário comunista da revolução ganha outra perspectiva a partir do pensamento de Gamsci. Para esse autor, a revolução socialista mundial ocorreria com o desenvolvimento de socialismos em cada país, ou seja, cada nação deveria promover a sua própria revolução. Para tal empreitada, o intelectual revolucionário deveria saber agir na formação de uma consciência revolucionária na população. Para tanto, deveria se apropriar de uma linguagem popular e nacional. É com vistas nisso que a esquerda brasileira passa a enxergar o samba, como um meio que pudesse propagar as contradições do capitalismo e divulgar/promover um ideal revolucionário. A figura do malandro é vista com bons olhos, pois ela ia contra a figura do trabalhador disciplinado, que o Estado tentava passar, no intuito de civilizar o samba. Essa figura é valorizada devido ao fato que ela ia contra as relações de trabalho típicas da sociedade industrial capitalística que se formava no Brasil das décadas de 30 e 40. Passa-se a usar a figura do “malandro” com a intenção de formar consciência de classe.
Percebemos que no período de institucionalização do samba como a música que demonstra a brasilidade, não há uma ação de uma intelectualidade negra, de um movimento negro. Essa é uma realidade que viria a se manifestar anos mais tarde.
O caso norte americano é diferente. Desde muito cedo, a perspectiva essencialista, a busca por um negro em essência, utilizou-se da música produzida pelos negros norte-americanos como um fator de identificação, de busca por uma identidade negra. Desde muito cedo, a intelectualidade negra se engajou em buscar o seu espaço, a sua cidadania, sua liberdade.
O caso americano também tem outra característica importante. O racismo presente nos Estados Unidos sempre foi mais declarado que o brasileiro. Se aqui no Brasil o samba negro era incorporado por intelectuais brancos, com orientações políticas diferentes, os americanos brancos tendiam a se afastar da música negra, por ela ser sinônimo de atraso cultural.
Para tanto, basta observarmos as principais músicas populares americanas. A música do branco americano é o folk, o country. Músicas com compasso binário, acelerada, festiva. A música negra, sãos os spirituals e o blues. E os espaços sociais de cada um desses estilos populares é determinado e específico. O branco não vai ao lugar social da música do negro e vice-versa.[1]
Sendo assim, a trajetória histórica da música negra americana, segundo esses intelectuais remetem diretamente a um passado africano. Mesmo entre alguns brasileiros essa interpretação é hegemônica. Roberto Muggiati[2] ao falar sobre o rock, nos diz que o movimento da contracultura americano, da década de 1960 procurava falar em nome da cultura negra; tentava conceder ao negro um espaço para que ele pudesse expor o seu lamento por uma trajetória segregacionista, desigual e racista. Para esse autor brasileiro, a origem do rock é negra. O grito do rock é a releitura, a aproximação de um passado, onde surge o grito melancólico e triste do escravo negro que desembarca na América. A rebeldia do rock é a própria rebeldia do escravo negro.
A partir da década de 1950, com a expansão econômica e cultural americana, a música estadunidense se dissemina sobre o mundo. Essa disseminação cultural/musical americana muitas vezes foi interpretada como um imperialismo cultural (basta observarmos o fenômeno da Jovem Guarda, uma releitura do rock americano, feita no Brasil. Esse movimento foi diversas vezes caracterizado de alienado e conivente com o imperialismo americano).
Para quem via de fora, a música americana era entendida como elemento da identidade nacional dos Estados Unidos. Apesar da tendência que foi dominante durante décadas em se pensar o rock norte-americano como parte de uma política imperialista, a divulgação mundial do rock, do blues e do jazz não precisam necessariamente ser interpretadas como iniciativa maniqueísta e impositiva de se apresentar à outros países um ideal de cultura. O grande diferencial da música como um todo, no século XX em comparação com outros momentos da história, está no fato de que no século passado ela ganha uma característica inédita, que é a racionalização da produção, que na verdade passa a acompanhar toda a esfera de produção cultural. A novidade é a indústria cultural.
Nesse caso, a veiculação mundial do rock e de outras vertentes da música oriunda das comunidades negras não é necessariamente a imposição de uma identidade nacional sobre outras, muito menos da identidade negra sobre a branca. Se fosse este o caso, todos os americanos dos anos 1960 e 1970 cantariam como Tom Jobim em função da projeção do grande compositor brasileiro nas terras do Tio Sam e os contemporâneos vestir-se-iam tal como Carlinhos Brow, que recentemente ganhou projeção mundial por ser um dos candidatos ao Oscar de melhor trilha sonora. Estamos falando de artistas que criaram padrões estéticos musicais transnacionais. Não é a venda de um produto que representa uma identidade nacional, embora este elemento esteja presente. A título de exemplo, ninguém no Brasil passou a se comportar como um inglês nos anos 1960 só por que os Beatles foram um fenômeno musical global. As mulheres americanas não colocaram abacaxis na cabeça por que Carmem Miranda fez uma carreira de grande sucesso nos Estados Unidos.
E apesar de no momento atual observamos um crescimento forte dos movimentos afirmativos que almejam dar para as culturas negras afro americanas o espaço que lhes foi negado no passado, há também observações interessantes acerca das bases que fundamentam tais políticas afirmativas, uma das mais interessantes está em Paul Gilroy[3].
Este autor critica algumas das principais tendências interpretativas da cultura negra, principalmente as perspectivas essencialista e a pluralista. Para ele, a produção da intelectualidade negra engajada, investigando a cultura negra, ainda se baseia muito em conceitos europeus da modernidade, conceitos originados do iluminismo. A produção da intelectualidade negra se engaja em adquirir, de buscar, de fornecer aos negros noções como as de liberdade, de cidadania, de autonomia social e política. Podemos perceber que o autor não se posiciona contra estas buscas, entretanto, ele critica as bases da argumentação que exige esse espaço para o negro.
Para ele, essa busca dos negros ainda se baseiam em conceitos perniciosos como o de absolutismo étnico e o de nacionalidade. Perniciosos na medida em que atualmente as questões políticas e econômicas transcendem as fronteiras nacionais. O absolutismo étnico é criticado, pois essa perspectiva desconsidera a constante troca de informações entre culturas em movimento. Esse etnocentrismo busca uma essência, uma homogeneidade, uma cultura pura, que, a rigor não existe dada as novas concepções de cultura.
É comum se observar que o discurso negro sobre sua música se posiciona de tal forma a afirmar que essa produção musical é o elemento integrador de sua identidade. Em se tendo essa identidade étnica se reivindica uma ideia de nacionalidade para essa cultura.
Isso aconteceu com o blues, aconteceu com o jazz, aconteceu com o rock e acontece com o Rap (hip hop). Quando esses gêneros musicais foram apropriados pela indústria cultural como mercadorias, eles passaram a ser interpretados por artistas que não eram negros, causando uma revolta da população negra, que se sentia usurpada de sua cultura, de sua identidade, consequentemente, atrapalhava a sua reivindicação de nacionalidade. Muggiati fala que quando os brancos começam a cantar rock como os negros escravos, gritando, é em prol de uma iniciativa de incorporar a causa negra como a sua própria causa.
Talvez a grande crítica que se possa fazer com relação a estes pontos de vista, sobre a identidade do rock, a identidade do samba, a identidade da música negra, se apoia muito na argumentação de Gilroy e pode ser usados também alguns pressupostos teóricos acerca da indústria cultural.
A música negra não deveria representar identidades nacionais ou ainda perspectivas etnocêntricas, sob o risco de que a reivindicação anacrônica de nacionalidade pode gerar posturas e pensamentos raciais e fascistas. Um grande pensador da Escola de Frankfurt afirmava que a história deve, entre tantos atributos, dar voz àqueles movimentos sociais e culturais que foram silenciados pelos vencedores e muito desta filosofia da história se observa nos movimentos afirmativos que buscam valorizar o status da arte afro-americana. Tal cultura não precisa ser valorizada pela repressão que teve no passado, por que isso seria reduzir sua especificidade estética. Ela passaria a ter valor apenas por ter sido reprimida. A música e a religiosidade negra possuem riquezas próprias, não precisam da piedade da História para ganhar legitimidade de exposição e manifestação. Outra questão interessante a se pensar é sobre a égide do transnacional.
A música negra tem origem no contato cultural existente no atlântico negro durante a diáspora atlântica. Ela então, não se prende a uma ideia de nacionalidade, como é pensada pela intelectualidade negra. Ela é multicultural e transnacional. Também não podemos pensar que a veiculação da música americana unicamente como uma propagação imperialista de uma cultura. Primeiro por que se observarmos a origem do rock, ele é o contato entre um elemento negro e branco (blues e country). Ou seja, é o contato entre culturas que se dispersaram pelo mundo do atlântico negro, mais precisamente, não se prende a um território nacional, a uma ideia de nação. Segundo, a dinâmica da produção cultural, da indústria cultural, esta se interessa em vender um produto e não em impor uma cultura. As gravadoras estrangeiras que se instalaram no Brasil nos anos 1970 possuíam nos seus casts uma maioria de artistas brasileiros.[4] Se ela impõe uma cultura, impõe a própria cultura capitalista global e não necessariamente identidades nacionais. Seria um absurdo pressupor que Ivete Sangalo em Nova York seria uma inversão no imperialismo cultural, ou que o sucesso global de artistas como Ramstein (Alemanha) e Lordi (Finlândia) vai nos fazer ser menos brasileiros. A racionalização da produção faz com que as empresas multinacionais da produção cultural (companhias cinematográficas, editoras, gravadoras, entre outras) comercializem o que elas já têm pronto em seus países de origem, simplesmente por que já é um produto acabado, não precisa ser produzido novamente em outro território Não gera custos novos, exceto o de distribuição. O que está no horizonte então é o lucro, e não a imposição cultural nacional.
São estas as sugestões para que a partir das noções apresentadas por Gilroy, de diáspora e da transnacionalidade do Atlântico Negro, possam abrir margens para uma nova leitura, uma nova história da música negra, não desconsiderando o avanço do capitalismo global.
Referências:
ALMEIDA, Cláudio, Cultura e sociedade no Brasil: 1940-1968 : São Paulo, SP : Atual, 1996;
DIAS, M. T. Os donos da voz: Indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura : SP, Bomtempo, 2000
GILROY, Paul. O atlântico negro : Modernidade e dupla consciência : Rio de Janeiro, Ed. 34, 2001;
MUGGIATI, Roberto. Rock: O Grito e o Mito – A música pop como forma de comunicação e contracultura : Rio de Janeiro, Vozes, 1983
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O breve Século XX (1914-1991) : Cia. Das Letras, São Paulo, 1999;
HOBSBAWM, Eric História social do Jazz : Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990
[1] Algo semelhante ocorria no Brasil no final do século XIX, quando ritmos europeus como a marcha e a polca invadem o mundo musical dos brancos, enquanto nos lugares reservados aos negros estavam acontecendo as rodas de choro. Exemplo clássico é a trajetória musical de Chiquinha Gonzaga, pianista branca que freqüentava rodas de choro, indo contra toda a postura segregacionista, racial da época.
[2] MUGGIATI, R. Rock: O Grito e o Mito – A música pop como forma de comunicação e contracultura : Rio de Janeiro, Vozes, 1983
[3] GILROY, Paul. O atlântico negro : Modernidade e dupla consciência : Rio de Janeiro, Ed. 34, 2001
[4] DIAS, M. T. Os donos da voz: Indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura : SP, Bomtempo, 2000, p. 55